terça-feira, 3 de março de 2009

A manteiga

Estavam todos na sala reunidos, quando um dos convidados levantou e perguntou a dona da casa.
"Onde fica a manteiga?" Melia de imediato respondeu. "Em cima da mesa da cozinha".
Havia muito tempo, näo conseguia reunir todos os saudosos amigos em sua terra alheia. Melia nasceu em 1950 na cidade de Igarape-Miri, no estado do Pará, e morava há 20 anos na capital paulista. Alguns dos amigos estavam na cidade especialmente para conhecer a grande metrópole e outros para comemorar os 50 anos da amiga. Naquele dia, Melia escutou todos os assuntos novos e velhos, além do sotaque cantado que a tempos se tornara peculiar. No total eram seis convidados. Quatro homens e duas mulheres. Dois ex-namorados e uma, Susana, antiga paixäo.
Roberto levou a mantegueira até a mesa da sala. Todos ansiavam comer a especialidade gastronômica de Melia, que tinha acabado de sair do forno: päo caseiro com a mortadela do Mercado Municipal. Quando Roberto abriu a mantegueira, a manteiga estava com a cor amarelo-vivo, mole, com gorduras derretidas. Näo sentiu nenhum estranhamento. Melia achou aquela manteiga uma afronta, em pleno inverno. Fazia um dia ardorosamente quente. Ela näo entendia um dia de veräo em pleno mês de agosto em Säo Paulo.
Para Melia a manteiga era seu termômetro. Sabia identificar através dela as quatro estaçöes: primavera, veräo, outono, inverno. Observava tudo pela consistência da manteiga.
Morou os 30 anos iniciais de sua vida numa cidade de temperatura constantemente escaldante.
Em Igarape-Miri a manteiga, o ano todo, tinha o aspecto maleavel e gorduroso. Nesse tempo, Melia achava que a manteiga só tinha uma consistência: a mole. Uma de suas primeiras impressöes quando chegou em Säo Paulo, em junho de 1980: a manteiga. A viu em cima da mesa, na casa da sua tia Mona, uma simpática velhinha solteirona. Mona morreu 5 anos depois que sua querida sobrinha mudou de cidade especialmente para cuida-la. Melia näo conseguia passar a manteiga no päo quentinho que sua tia tinha acabado de preparar para recepciona-la. Perguntou a Mona porque guardava a manteiga na geladeira, já que ficava täo dura e consistente, impossível de passar no päo. A velha tia gargalhou e em seguida sussurrou. "Oh minha filha! Você ainda é muito ingênua, ainda tem muito a aprender na cidade grande". Melia ficou sem entender, mas ficou quieta. Näo queria aborrecer sua tia.
Uma carta de Mona em maio de 1980, salvou Melia da confusäo que sua vida se tornara depois que a libanesa Susana declarara seu silencioso amor. Uma loucura de prazer e culpa revirava seu corpo. A cidade desconfiou. Duas belas mulheres rodopiando nas tardes ensoloradas. No igarapé, nos bancos da praça, nos terrenos baldios. A reputaçäo de Melia estava arruinada.
A carta dizia assim:
" Minha querida sobrinha,
Näo sou muito boa nas palavras, mas minha saudade de Igarape-Miri vence todas as barreiras. Näo tenho mais saúde de ir até minha terra e rever meus belos momentos. Näo tenho herdeiros e ninguém pra me acolher. Gostaria que você viesse pra cá, morar. Faria bem pra você, e pra mim. Nós, pobres mulheres solitárias.
Aguardo sua presença e deixo cruzeiros para sua viagem."
Os pais de Melia acharam a idéia pertinente. Afinal, vislumbravam enfim um futuro palpável para a filha solteira e perdida. Melia passou quase 4 dias dentro do ônibus. Chorou nos dois primeiros. No terceiro dia começou a sentir o friozinho das terras do sul e se animou. Conseguiu comprar um fino agasalho no meio do caminho. Terminou a viagem aquecida com pequenas doses de pinga e um velho cobertor que lhe acompanhara a travessia toda.
Susana ficou desolada. Uma semana depois do brusco adeus de Melia, se entregou a Igreja da comunidade, deixando as beatas senhoras escandalizadas.
Depois de 20 anos, Susana, Melia e todos os velhos amigos estavam juntos outra vez. No meio disso tudo, a pobre manteiga inconsistente, naquele estado, em pleno inverno, näo era coerente.
Todos riram com as observaçöes de Melia sobre a manteiga. Apenas uma pessoa näo riu. Susana estava seria e envelhecida. Sua boca enrugada se abriu e falou. "A manteiga insistentemente em nosso päo de todos os dias. Mole e impregnante quando se esbarra na faca, suja a toalha da mesa e nossos dedos, e enfim penetra no päo. Näo poderia jamais endurecer".
Ficaram todos uns segundo paralisados, sem compreender.
Depois riram até o final do dia.

4 comentários:

  1. Será muito bom o dia em que em nós nos reencontrarmos em Sampa depois de muito tempo e nossa amizade não ter endurecido... Bjos

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  2. Pat, parabéns estou adorando os textos!!! Continue menina, não jogue esse talento fora!!!
    bjos
    Grazi

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  3. A manteiga não poderia jamais endurecer...
    Belo texto. Parabéns Pat Lio.

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  4. Há vários anos, Marcelo Rubens Paiva (com Feliz Ano Velho) foi o primeiro de uma (a partir de então começada) safra de jovens autores a se tornar consagrado a partir de um meio underground. Naquela época havia o cara que publicava suas obras nos postes, em fanzines e em vários outros meios undergrounds. Hoje há os blogs, mas há bons blogs que viram febre e outros que viram nada, o blog da Patricia Lio é diferente, com sua sensibilidade emocional, passional textualidade e (por mim) invejável capacidade de ler as entrelinhas da vida, talvez se torne a primeira de uma nova safra de jovens autores a se consagrar, transcedentalmente a partir de um meio que ainda é underground.

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